A dramaturgia brasileira perde muito de seu encantamento com a morte dos dois atores
Por: Marcello Rollemberg | Jornal da USP
Esses são apenas alguns pouquíssimos – mas determinantes – exemplos do que Paulo José e Tarcísio fizeram em sua longa vida artística. São dezenas e dezenas de personagens marcantes, emblemáticos naquilo que se convencionou hoje a chamar de “plataformas multimídia”: cinema, teatro e TV. “Acho que, para a dramaturgia, quem deixa uma contribuição maior é o Paulo José, que não escreveu muito, mas dirigiu e foi uma inteligência e liderança carismática para todos no teatro brasileiro moderno e contemporâneo, reverberando indiretamente na dramaturgia”, analisa o dramaturgo e professor do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) Luiz Fernando Ramos. “Os dois são exemplos de profissionais em que vida e interpretação estiveram casadas e geraram muitos frutos. O Paulo mais eclético e poético, o Tarcísio mais convencional e amplo. Ambos, exemplares em seus domínios”, afirma ele, lembrando que, mesmo com todo o sucesso na TV, foi no cinema que eles tiveram alguns de seus momentos mais marcantes: “No caso de ambos, de modos diferentes, tornaram-se muito populares na TV, mas ofereceram suas melhores contribuições no cinema. Paulo, o padre jovem apaixonado, na estreia, em O Padre e a Moça, de 1966, e Macunaíma no apogeu. Tarcísio, o D. Pedro I encantador, em plena ditadura, e o canastrão absoluto no Idade da Terra do genial Glauber Rocha, que lhe ofereceu o melhor papel de sua vida”.
Poder e gentileza
Tanto o gaúcho de Lavras do Sul Paulo José quanto o paulistano Tarcísio Meira começaram a construir suas carreiras ainda nos anos 1950, ambos nos palcos. Mas logo esses caminhos iriam se bifurcar (ou trifurcar). Enquanto Tarcísio já enveredava, em 1959, na TV Tupi – onde começaria a contracenar com Glória Menezes, que havia conhecido no teatro, e que seria sua companheira por quase uma vida inteira, nas telas e, principalmente, fora delas –, Paulo José se firmaria primeiro como homem do teatro (pisou firme no Teatro de Arena, no começo dos anos 1960) e do cinema. A televisão só entraria em sua vida em 1969, com a novela Véu de Noiva, da TV Globo.
A partir daí, construíram, cada um a seu modo, carreiras que fazem parte da história da dramaturgia brasileira. E aí, intérpretes e personagens se confundem definitivamente. Tarcísio, alto, forte, bonitão, seria para sempre o herói, o galã – expressão que ele odiava, frise-se, por achar “zombeteira” –, por mais que tivesse feito papeis dos mais distintos, como o tímido, caricato e engraçado Felipe, na novela Guerra dos Sexos, em 1983, ou o jagunço (que o deixou irreconhecível) Hermógenes, na adaptação televisiva de Grande Sertão: Veredas, de 1985. Não adiantou nem a fuga para personagens mais, digamos, “heterodoxos”, como o Aprígio de Beijo no Asfalto, que beija um moribundo no meio da rua na adaptação cinematográfica da peça de Nelson Rodrigues: Tarcísio Meira sempre será o “namoradão do Brasil”.
Os dois atores são, de fato, parte indissociável e essencial desse grande puzzle que é a dramaturgia. Ou, como explica o ator Abílio Tavares, ex-diretor do Teatro da USP, o Tusp, e professor convidado do Departamento de Artes Cênicas da ECA: “Paulo José e Tarcísio Meira simbolizam a televisão, o cinema e o teatro. Tarcísio é a própria televisão, veículo que lhe trouxe a consagração máxima. Ele personifica o próprio poder da televisão, sua força imensa de alcance e comunicação em relação às outras linguagens. A própria imagem física do ator representa isso. Seus grandes papeis na televisão foram personagens de poder, mesmo aqueles de origem humilde como o valente garimpeiro João Coragem ou o empreendedor Antônio Dias em Escalada (de Lauro César Muniz, 1975). Eram personagens fortes, fosse pela dignidade, pelo senso de justiça ou pela determinação. Tarcísio personificou magistralmente ainda o poder devasso, em sua premiada criação para o personagem Dom Jerônimo Taveira em A Muralha (de Maria Adelaide Amaral, 1999)”.
E Tavares continua, focando e analisando a trajetória de Paulo José. “Se por um lado Tarcísio encarnou o poder, Paulo José encarnou no teatro, na televisão e no cinema personagens um tanto ‘desalinhados’ aos padrões oficiais, como o ‘herói sem caráter’ Macunaíma, o boêmio Tézinho, em O Rei da Noite (de Hector Babenco, 1975), e Orestes, o incorrigível pai alcoólatra em Por Amor (de Manoel Carlos, 1997), entre tantos outros. Embora tenha tido uma brilhante carreira na televisão, onde além de ator atuou também como diretor, Paulo José encontrava especialmente no teatro e no cinema as grandes ‘casas’ de seu aparente ‘desalinhamento’.”
Fosse onde fosse – teatro, cinema, televisão –, Paulo José e Tarcísio Meira souberam fascinar como poucos. Porque, no final das contas, viver personagens, criá-los com dedicação, dar vida e forma àquilo que no começo eram palavras e ideias vai muito além de vestir um personagem para se despir dele no final do dia. É puro encantamento.
Fotos: USP Imagens
- Foto 1: Tarcísio Meira e Paulo José – Foto: Reprodução / Fotomontagem Jornal da USP
- Foto 2: Tarcísio Meira como o capitão Rodrigo Cambará, na adaptação do romance O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, dirigida por Paulo José – Foto: Reprodução)
- Foto 3: Paulo José como Macunaíma – Foto: Reprodução
- Foto 4: Paulo José como Shazan – Foto: Reprodução
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