Filosofia na formação inicial de professores-pedagogos: o fulcro da práxis docente

A Filosofia da Educação assume relevância capital na formação de professores e pedagogos

Marcos Pereira dos Santos (*)

No intuito de melhor compreender a importância da disciplina de Filosofia da Educação para formação inicial de professores-pedagogos como fulcro da práxis docente, faz-se necessário, em primeiro lugar, tecer breves comentários acerca das principais regulamentações legais sofridas pelo curso de Pedagogia a partir de sua criação, no Brasil, no final da década de 1930. Os principais aportes teóricos estão nas seguintes obras: Curso de pedagogia no Brasil: história e identidade; Educação: do senso comum à consciência filosófica; e Pedagogia, pedagogos e formação de professores: busca e movimento, de autoria de Carmem Silvia Bissolli da Silva (1999), Dermeval Saviani (1980) e Iria Brzezinski (1996), respectivamente.

Estudos desenvolvidos por Brzezinski (1996) e Silva (1999) revelam que a primeira regulamentação ocorre exatamente com a implantação do curso de Pedagogia no Brasil por meio do Decreto-Lei nº 1.190, de 04 de abril de 1939, quando foi organizada a Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade do Brasil (atual Universidade de Brasília – UnB), idealizada pelo então ministro da Educação e Cultura Darcy Ribeiro, em 1961, dando origem ao denominado “esquema 3 + 1”, em que estudantes de Pedagogia cursavam três anos de bacharelado mais um ano de licenciatura – “curso de Didática”; tendo em vista que a seção de Pedagogia, ao lado das seções de Filosofia, Ciências e Letras, compunham as “seções fundamentais” da Faculdade em questão.

A segunda regulamentação, por sua vez, se dá por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961), que culminou com a aprovação, pelo Conselho Federal de Educação (CFE), do Parecer nº 251/62, o qual estabelecia o “currículo mínimo” para o curso de Pedagogia no Brasil entre outras providências, tendo como autor e relator o conselheiro e professor Valnir Chagas. Ainda permanecia em vigor o “esquema 3 + 1”. Todavia, a formação dos chamados “técnicos” ou “especialistas” em educação era feita somente em nível de cursos de pós-graduação lato sensu na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade do Brasil. 

Por fim, a terceira regulamentação aconteceu somente em 1969, face ao advento da Lei da Reforma Universitária ou Lei do Ensino Superior (Lei Federal nº 5.540, de 28 de novembro de 1968), quando o CFE, através do Parecer nº 252/69, também de autoria de Valnir Chagas, aprovou a regulamentação oficial do curso de Pedagogia no Brasil (“currículo mínimo” e tempo de duração) e o surgimento das habilitações técnico-administrativas e técnico-científicas, visando à formação de “técnicos” ou “especialistas” em educação. 

Desde o início de sua criação, o curso de Pedagogia, no Brasil, tem sido composto por um elenco bastante diversificado de disciplinas curriculares, as quais podem ser entendidas como um “corpo de conhecimentos logicamente organizados em termos de conceitos, saberes e fazeres pedagógicos úteis à formação profissional” (BOTH, 1982, p.41). Elas se configuram, em outros termos, como um conjunto de conteúdos sistemáticos e experiências práticas que constituem e dinamizam uma determinada área do conhecimento.

Com base no “esquema 3 + 1”, o curso de Pedagogia, no Brasil, foi inicialmente estruturado abrangendo disciplinas curriculares voltadas tanto para o bacharelado, com duração de três anos, quanto para a licenciatura, com um ano de duração (“curso de Didática”).

Segundo Brzezinski (1996), Franco (2002) e Silva (1999), para o bacharelado, o “currículo mínimo” do curso de Pedagogia, até meados dos anos 80, era fixado em sete disciplinas curriculares básicas, sendo cinco obrigatórias ou de núcleo geral/comum (Psicologia Geral e da Educação, Sociologia Geral e da Educação, História da Educação, Filosofia Geral e da Educação e Elementos de Administração Escolar, dentre outras que compunham a grade curricular) e duas de caráter opcional, a serem escolhidas pelas instituições de ensino superior (Biologia Educacional, História da Filosofia, Estatística Aplicada à Educação, Métodos e Técnicas de Pesquisa Pedagógica, Cultura Brasileira, Educação Comparada, Higiene Escolar, Currículos e Programas, Técnicas Audiovisuais de Educação, Teoria e Prática da Escola Primária, Teoria e Prática da Escola Média eIntrodução à Orientação Educacional, entre outras).

Todas essas disciplinas curriculares se destinavam à formação de “técnicos” ou “especialistas” em educação, por meio da oferta das seguintes habilitações: a) técnico-administrativas (visavam desempenhos funcionais): Administração Escolar, Supervisão Educacional, Inspeção Escolar e Orientação Educacional; e b) técnico-científicas (objetivavam tornar a educação mais rentável): Tecnologia Educacional, Alfabetização Escolar e Educação Pré-Primária, entre outras. Em ambos os casos, eram também ofertadas disciplinas curriculares de cunho específico (“parte específica/diversificada”), cujo rol é bastante amplo; de tal forma que não há, nesse sentido, necessidade expressa de fazer menção ao mesmo no escopo deste artigo.     

Em contrapartida, para a licenciatura eram ofertadas as principais disciplinas curriculares componentes do campo dos “Fundamentos da Educação” (Psicologia da Educação, Filosofia da Educação, História da Educação e Sociologia da Educação), bem como Didática Geral, Didática Especial e Prática de Ensino (equivalente ao atual Estágio Curricular Supervisionado), entre outras, as quais estavam diretamente voltadas à formação de professores para atuar na pré-escola (hoje equivalente à Educação Infantil), nas séries iniciais do 1º grau (atualmente Anos Iniciais do Ensino Fundamental) e nas disciplinas pedagógicas do 2º grau – curso Normal (atualmente chamado de curso de Magistério, curso de Formação de Formadores ou curso de Formação de Docentes, ofertado em nível de Ensino Médio).

Apesar das três regulamentações legais sofridas pelo curso de Pedagogia, no Brasil, a disciplina de Filosofia da Educação, em particular, sempre fez parte do “currículo mínimo” do curso supracitado, tanto para o bacharelado quanto para a licenciatura, configurando-se assim como disciplina curricular obrigatória ou de núcleo geral/comum (SANTOS, 2006), e que (ainda) apresenta um viés essencialmente teórico.

A Educação é um processo vital e contínuo que visa o desenvolvimento integral do homem (paideia) em seus múltiplos aspectos, podendo ser realizada de modo formal, informal ou não formal (LIBÂNEO, 1999). Assim sendo, se considerarmos a Filosofia como a ciência da reflexão acerca dos problemas da vida e do mundo e, nesse contexto, a Pedagogia como teoria e prática da educação, pode-se dizer que a Filosofia da Educação é uma disciplina curricular de importância capital no curso de Pedagogia.

A Filosofia da Educação objetiva contribuir para o desenvolvimento de uma atuação profissional crítica, reflexiva, coerente, eficaz, eficiente, justa, humana e transformadora da realidade educacional por parte do professor-pedagogo, tanto no campo da docência quanto nas áreas de trabalho não docente (direção escolar, orientação educacional, supervisão educacional, gestão escolar, coordenação pedagógica etc.) voltadas a espaços educacionais escolares e não escolares (empresas, sindicatos, organizações não governamentais (ONGs), hospitais e instituições religiosas, entre outras instâncias sociais congêneres.

De acordo com Saviani (1980, p.30), “a Filosofia da Educação não tem como função principal fixar a priori princípios e objetivos para a educação escolar, nem tampouco se reduz a uma teoria geral da educação enquanto sistematização dos seus resultados”. Ela não estabelece métodos ou técnicas educacionais, nem visa fornecer os meios de educação. Portanto, está longe de ser a panaceia da educação.

A Filosofia da Educação busca, outrossim, acompanhar reflexiva e criticamente a atividade educacional de modo a explicitar os seus fundamentos teórico-metodológicos e identificar a contribuição das diferentes disciplinas pedagógicas para a formação do professor-pedagogo e de outros profissionais da educação; bem como orientar os educadores em geral na tomada de decisões acertadas face aos problemas (ponto de partida da Filosofia) que, direta ou indiretamente, assolam a escola e a sociedade como um todo.

Em outras palavras, isso significa afirmar que a finalidade precípua da Filosofia da Educação, como ramo das Ciências da Educação (NÓVOA, 1996), consiste em oferecer aos professores-pedagogos e demais educadores um método de reflexão filosófica (radical, rigorosa e de conjunto) que lhes permite analisar criticamente o processo educativo, penetrando na sua complexidade e encaminhando a solução de problemas educacionais, tais como: o conflito entre “filosofia de vida” e “ideologia” na atividade do educador; a necessidade da opção ideológica e suas implicações; o caráter parcial/fragmentário e superável das ideologias; o dissenso entre diferentes ideologias; as possibilidades e limitações, os meios e fins, a legitimidade e o valor social da educação; as conexões entre meios e fins da educação; a relação dialética entre teoria e prática (práxis) etc.

É interessante destacar que, para Saviani (1980), no âmbito da radicalidade, rigorosidade e globalidade da reflexão filosófica, a Filosofia da Educação apresenta uma tríplice tarefa de análise conjuntural nas seguintes dimensões:

a) Antropológica: não se detém ao tradicional da cultura, entendendo o homem como sujeito social que educa, se educa e é educado. Portanto, o homem é um ser incompleto, inacabado, em continuum processo de evolução; conforme bem apregoa a concepção freireana de educação.

b) Axiológica: a Educação é concebida como uma prática social envolta de valores (éticos, morais, políticos, econômicos etc.) que a norteiam e sustentam.

c) Epistemológica: efetua uma análise crítica acerca dos processos de construção, co-construção, desconstrução, reconstrução, organização, sistematização e transmissão de conhecimentos científicos em Educação.

A reflexão filosófica sobre a Educação é que dá o “tom” à Pedagogia, garantindo-lhe a compreensão dos valores que, hoje, direcionam a prática educativa e dos valores que deverão orientá-la no futuro. Portanto, não há como se ter uma proposta pedagógica sem fundamentos e proposições filosóficas. Se nem sempre esses pressupostos estão tão explícitos, é preciso explicitá-los; visto que eles sempre existem. Por vezes, os mesmos estão subjacentes; mas nem por isso inexistentes. Daí a reflexão filosófica ser capaz de fazê-los (re)aparecer, uma vez que somente a partir da tomada de consciência desses pressupostos é que se pode, efetivamente, optar por escolher uma ou outra concepção pedagógica para nortear a práxis docente.   

Nesse sentido, a Filosofia da Educação, ao lado de outras disciplinas curriculares de núcleo geral/comum dos cursos de licenciatura em geral, assume relevância capital à formação de professores e pedagogos, tendo em vista que toda educação escolar e prática pedagógica deve apresentar uma determinada orientação filosófica para o alcance de êxitos no processo ensino-aprendizagem. Dizemos isso, porque se a Educação é uma prática humana direcionada por uma determinada concepção teórica, então, toda prática pedagógica está articulada com uma pedagogia; que nada mais é do que uma concepção filosófica da Educação.

As relações entre Filosofia e Educação parecem ser quase “naturais”, haja vista que, na concepção de Luckesi (1991) e Piletti (1991), são dois fenômenos que estão presentes em todas as sociedades e vinculados no tempo e no espaço: a primeira, como interpretação teórica das aspirações, desejos e anseios de grupos humanos; e a segunda, como instrumento de veiculação dessa interpretação. Contudo, nos cursos de formação inicial de professores-pedagogos, a Filosofia da Educação tem a incumbência de auxiliar os estudantes a refletir criticamente sobre o que é ou deveria ser o pensamento em torno da Educação propriamente dita, em termos de sociedade, escola, ensino, aprendizagem, professor, aluno, cultura (geral, escolar e da escola), metodologia, conhecimentos, saberes, currículo (preescrito e oculto), avaliação (institucional e da aprendizagem) e gestão escolar (democrático-participativa/colegiada), entre outros elementos.

Posto isso, convém também chamar a atenção para o seguinte fato: o que leva um educador a filosofar, isto é, a pensar, refletir criticamente e buscar respostas (mesmo que efêmeras) para as suas inquietações pessoais são os problemas que ele encontra ao realizar a tarefa educativa dentro e fora do âmbito escolar (SAVIANI, 1980), o que já é um grande passo a ser dado rumo à conquista de uma Educação de melhor qualidade para todos e, consequentemente, para a construção de uma sociedade mais justa, humana, fraterna, equânime e verdadeiramente democrática.

Que possamos, portanto, dar os primeiros passos nessa direção, pois quem não pensa é pensado por outros. O momento é agora. Todavia, é preciso ter clareza de que a essência da Filosofia é a procura do saber (conhecimento teórico) e da sabedoria (conhecimento teórico-prático), e não a sua posse. Logo, a Filosofia da Educação não tem a pretensão de ser a solução ou fornecer respostas “prontas e acabadas”, mas contribuir para o questionamento acerca dos problemas que a realidade educacional apresenta. Ela não se ocupa do “fazer”, mas do “como fazer”; tendo como princípio básico desbanalizar o banal. Seu papel está latente nas circunstâncias em que se percebem as atitudes e os motivos que estão orientando uma determinada práxis docente.

Parafraseando o pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), cabe-nos dizer ainda, numa perspectiva de finalização: mais do que ensinar Filosofia ou Filosofia da Educação nos cursos de formação inicial de professores e pedagogos, é preciso ensinar os estudantes de licenciatura a aprender a filosofar por si próprios, isto é, a formar opiniões próprias, retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar, examinar detidamente, prestar atenção, analisar com cuidado, compreender a essência humana, “vasculhar” numa busca constante de respostas (efêmeras) e significados, entender de forma lógica e questionar o questionável; possibilitando-lhes não apenas o “ver”, mas o “olhar” o entorno. Trata-se, pois, de uma atitude complexa, não habitual e não espontânea à existência humana; porém, extremamente necessária ao “pensar-fazer” docente dentro e fora da escola. Portanto: filosofemos (...); hoje, amanhã e sempre, lembrando-nos que:

Filosofar é, num primeiro momento, refletir sobre a vida. [...] Especulação sobre a verdade e a natureza da verdade e do Universo são preceitos típicos do espírito filosófico. Todavia, ser filósofo vai além do saber teórico. Ser filósofo é querer saber, provar e comprovar seu conhecimento. [...] Nesse contexto, o papel do filósofo da Educação é o de ajudar a desvelar as exigências e necessidades no processo ensino-aprendizagem. Sobretudo, o educador precisa aprender que a Educação somente se faz com pessoas. Estas são educadas, e não doutrinadas. (SCHNEIDER, 2008, p.17-19)

 

Referências 

BOTH, I. J. Avaliação do curso de pedagogia face às necessidades do mercado de trabalho: o caso da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Porto Alegre, 1982. 282 f. (Dissertação de Mestrado em Educação – Universidade Federal do Rio Grande do Sul). mimeo.

BRZEZINSKI, I. Pedagogia, pedagogos e formação de professores: busca e movimento. Campinas: Papirus, 1996. (Coleção Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico).

FRANCO, M. A. S. Para um currículo de formação de pedagogos: indicativos. In: PIMENTA, S. G. (Org.). Pedagogia e pedagogos: caminhos e perspectivas. São Paulo: Cortez, p.99-127, 2002.

LIBÂNEO, J. C. Pedagogia e pedagogos, para quê? 2.ed. São Paulo: Cortez, 1999.

 

LUCKESI, C. C. Filosofia da educação. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1991. (Coleção Magistério 2º Grau – Série Formação do Professor).

 

NÓVOA, A. As Ciências da Educação e os processos de mudança. In: PIMENTA, S. G. (Coord.). Pedagogia, ciência da educação? São Paulo: Cortez, p.71-106, 1996.

 

PILETTI, C. Filosofia da educação. 4.ed. São Paulo: Ática, 1991.

SANTOS, M. D. M. A disciplina filosofia da educação no curso de pedagogia da Universidade Federal do Paraná nos anos de 1970 a 1990. Curitiba, 2006. 130 f. (Dissertação de Mestrado em Educação – Universidade Tuiuti do Paraná). mimeo.

SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1980. (Coleção Educação Contemporânea).

SCHNEIDER, L. A. Filosofia da educação. Curitiba: Editora do IBPEX, 2008.

SILVA, C. S. B. Curso de pedagogia no Brasil: história e identidade. Campinas: Autores Associados, 1999. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo – v.66).

           

prof-marcos-pereira web(*) Marcos Pereira dos Santos é doutorando e mestre em Educação, especialista em Gestão Escolar, especialista em Educação Matemática e licenciado em Matemática pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Licenciado em Pedagogia pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE). Escritor, poeta, cronista e articulista. Professor adjunto de Filosofia Geral e Filosofia da Educação na Faculdade Sagrada Família (FASF), junto a cursos de graduação (bacharelado/licenciatura) e pós-graduação lato sensu, em Ponta Grossa – Paraná. Endereço eletrônico: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

 

Comentários   

0 # Fernando Antonio Hello 04-12-2013 09:58
Parabéns pelo artigo. Pensar e repensar a Educação é tarefa diária do educador. É uma constantemente busca por redimensionar, ressignificar e contextualizar sua práxis, nos diferentes planos. Abs.
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