Fracasso escolar: mitos e verdades

Análise e reflexão sobre causas do fracasso escolar

Marcos Pereira dos Santos (*)

120px-Felicidade A very happy boyCogita-se, com acentuada frequência, a respeito da necessidade, importância e valorização de uma Educação gratuita e de qualidade. Todavia, muitas vezes os meios de comunicação de massa em geral (rádio, TV, jornais etc.) tendem, direta ou indiretamente, a reforçar a concepção ideológica imposta pela classe dominante acerca de certas afirmações nem sempre verdadeiras em relação aos processos de ensino e de aprendizagem que ocorrem na escola.

É preocupante, pois, observar o fato de que muitas informações transmitidas pelas mídias sejam falaciosas, isto é, girem apenas em torno de pré-conceitos, tabus, estereótipos e mitos – fatos naturais ou históricos narrados de forma alegórica e nem sempre fieis à realidade (GUSDORF, 1980), principalmente quando o assunto-chave diz respeito à situação da educação escolar no Brasil.

Grosso modo, pode-se dizer que são vários os mitos existentes acerca das causas e consequências do fracasso ou insucesso escolar de educandos. Dentre os muitos que poderiam ser elencados, podemos citar apenas sete deles, tendo como base estudos desenvolvidos por Abramowicz (1996) e Patto (1996): 1) o mito do mérito ou da pedagogia dos dons; 2) o mito da deficiência de linguagem cultural e verbal; 3) o mito da incapacidade de aprender; 4) o mito da desnutrição ou subnutrição; 5) o mito da carência afetiva; 6) o mito da evasão escolar; e 7) o mito da gratuidade do ensino público.

Sem a pretensão de esgotar o assunto em pauta, entendemos ser conveniente tecer breves comentários acerca de cada um dos mitos mencionados, a fim de contribuir para a desmitificação de certas assertivas que influenciam o pensamento e a prática pedagógica de muitos professores nas escolas brasileiras, em todos os níveis e modalidades de ensino.

O mito do mérito ou da pedagogia dos dons, de modo geral, considera que os educandos oriundos da classe dominante da sociedade apresentam aptidões teóricas e intelectuais que devem ser respeitas e valorizadas, podendo assim o professor se utilizar, com tranquilidade, das concepções pertencentes à corrente cognitivista da psicologia do desenvolvimento e da proposta construtivista piagetiana. Em contrapartida, esse mesmo mito reforça a concepção de que os alunos provenientes de classes economicamente desfavorecidas da população possuem apenas aptidões práticas, as quais, na grande maioria das vezes, não são levadas em consideração pela escola nem pelos docentes (CARVALHO, 1997).

Não há dúvida de que tal mito traz em seu bojo uma concepção educacional carregada de certo teor de discriminação e preconceito social, uma vez que faz distinção entre as aptidões apresentadas por alunos pertencentes às classes dominante e dominada da sociedade capitalista. É fundamental, pois, que os educadores tenham consciência da necessidade de diagnosticar, valorizar, respeitar e trabalhar com as diferentes capacidades, habilidades e competências demonstradas pelos estudantes em sala de aula; de modo que o aprendizado dos mesmos, através da mediação do professor, ocorra de forma significativa, eficaz e eficiente.

O mito da deficiência de linguagem cultural e verbal, por sua vez, ressalta que o baixo rendimento escolar dos educandos da classe dominada da população seja causado pela ausência de cultura – “conjunto de conhecimentos, crenças, leis, expressões artísticas, hábitos, costumes e aptidões adquiridas pelos sujeitos sociais” (LARAIA, 2004, p.61), pelo uso de uma linguagem não padrão ou não culta e pela incapacidade de expressão e comunicação por parte dos alunos.

É fato comprovado que essas afirmações são falaciosas, haja vista que os aprendizes apresentam diferenças culturais que precisam ser respeitadas, valorizadas e trabalhadas pelos professores na escola, pois são ricas em particularidades próprias das diferentes regiões brasileiras (dialetos, expressões linguísticas, gírias, ritos, manifestações folclóricas etc.); formando assim o que Certeau (2001) chama de subcultura, isto é, uma forma peculiar de cultura que faz parte de uma cultura global, mais geral.

Portanto, isso significa dizer que é preciso levar em conta as diferenças linguísticas – uso do português padrão e do português não padrão (BAGNO, 2004; 2005) e promover a adaptação das escolas para o atendimento aos alunos com necessidades educativas especiais (paradigma de suporte), de modo que se efetive verdadeiramente a integração e a inclusão de todos os indivíduos na escola e na sociedade, independentemente de raça, cor, sexo, religião, estado civil e classe social a que os mesmos possam pertencer.

Outra falácia concernente à gênese do fracasso escolar dos educandos, diz respeito ao mito da incapacidade de aprender. Segundo essa concepção, os alunos oriundos das camadas pobres da sociedade não têm capacidade intelectual suficiente para permanecer nos bancos escolares e, consequentemente, desenvolver um aprendizado que lhes seja útil para a vida pessoal e profissional. Percebe-se, pois, que o fator preponderante para a ocorrência de aprendizagem, nesse contexto, é a classe social a que um aluno possa pertencer; deixando-se de lado questões relacionadas ao desenvolvimento cognitivo, fisiológico, psicológico etc. que interferem no processo de aprendizagem.

Efetuando-se uma análise crítica acerca dessa assertiva, é possível concluir que se trata de uma ideia ingênua e pessimista, a qual não passa de mera desculpa utilizada por muitos professores para se abdicarem da sua principal função que é a de ensinar, tendo em vista a formação integral dos educandos e a transformação da sociedade. Dizemos isso, porque concordamos com Jean Piaget (1896-1980) e Lév Seminovich Vygotsky (1896-1934) quando afirmam que “todo ser humano nasce com uma pré-disposição biológica para desenvolver a inteligência, construir conhecimentos e aprender” (BARROS, 1996, p.112); aprendizagem essa que ocorre por intermédio das experiências vividas, ações praticadas e interações do sujeito com o meio/ambiente (concepção sociointeracionista construtivista de desenvolvimento humano).

Do mesmo modo, o mito da desnutrição ou subnutrição, enfatiza, falaciosamente que as crianças pobres apresentam alto índice de desnutrição protéica e, por esse motivo, são incapazes de aprender os conteúdos curriculares repassados pelos docentes através da instituição-escola. Note-se, pois, que essa é uma concepção deveras radical, a qual não justifica o fato de os alunos de baixa renda serem considerados pela escola e/ou pelos professores como inaptos para aprender; ficando assim à mercê dos ditames da classe detentora do poder político e econômico e, consequentemente, à margem da sociedade.

Contudo, não se pode negar que a falta de uma alimentação sadia, equilibrada e de qualidade contribui significativamente para o desequilíbrio das funções orgânicas humanas, visto que o homem é um ser biopsicossocial, uma “máquina” cujas engrenagens trabalham em ritmo acelerado, sistemático, organizado, estruturado, simultâneo e integrado. Logo, dizer simplesmente que a desnutrição protéica é a principal causa do insucesso escolar dos alunos é uma afirmação, no mínimo, medíocre, mesquinha, antiética e antididática que merece ser revista e analisada em termos de radicalidade, rigorosidade e globalidade, ou seja, efetuando-se uma reflexão filosófica a respeito; tomando-se, principalmente, como pano de fundo as concepções de Saviani (1980).

Seguindo semelhante linha de pensamento, o mito da carência afetiva destaca que a criança pobre não aprende porque é extremamente carente do afeto de seus pais, uma vez que pertence a uma família desorganizada, desestruturada, desequilibrada e desregrada, onde não há espaço, portanto, para a harmonia e o amor entre os familiares.

Tal afirmativa configura-se bastante complexa para ser aplicada a todas as situações de ensino e aprendizagem escolares. Embora estejamos de acordo com Henri Wallon (1879-1962) ao salientar a importância da afetividade (emoções e sentimentos) para a ocorrência da aprendizagem, a qual se dá numa espécie de movimento pendular de desenvolvimento do mundo subjetivo para o mundo objetivo (DANTAS, 1992; GALVÃO, 1995), acreditamos que além da questão emocional (relação afeto-cognição) muitos outros fatores (sociais, políticos, econômicos, culturais etc.) somam-se a este para influenciar, direta ou indiretamente, o ritmo e o modo pelos quais os alunos constroem seus conhecimentos dentro e fora da escola.

Problematizando ainda mais a questão do baixo desempenho dos alunos na escola, pode-se citar também a existência do mito da evasão escolar, o qual parte do princípio de que a criança pertencente à classe inferiorizada da população se evade da escola porque necessita, desde muito cedo, trabalhar fora para ajudar aos pais e, assim, aumentar a renda familiar.

É bem verdade que em algumas regiões paupérrimas do Brasil, muitas crianças em idade escolar, ainda nos dias de hoje, abandonam a escola porque são obrigadas pelos pais a trabalhar. No entanto, isso não é regra geral. Acreditamos, pois, que não se pode ter uma visão simplista do fato, visto que, conforme nos aponta Patto (1996, p.34), as causas de evasão escolar por parte de alunos carentes estão relacionadas a inúmeros fatores, tais como: “falta de estímulo e incentivo familiar, patologias de ordem neurológica, aversão em relação a uma determinada disciplina do currículo escolar e problemas de cunho econômico-financeiro, entre outros”.

Em última instância, o mito da gratuidade do ensino público também aparece como possível forma de explicação das causas do fracasso escolar dos educandos, uma vez que essa abordagem assegura que as crianças de baixa renda estão fora da escola porque os pais, sendo pobres, não têm condições financeiras suficientes de manter seus filhos estudando, haja vista as despesas com material didático, uniforme escolar, lanche, deslocamento etc.; bem como as exigências burocráticas das escolas e a baixa qualidade da educação pública brasileira.

Não se pode negar o fato de que a educação brasileira passa por problemas de diversas ordens e origens. Entretanto, isso não implica considerar que uma educação pública e gratuita não apresenta qualidades suficientes capazes de assegurar o bom desempenho dos educandos na vida pessoal, escolar e profissional; pois o comportamento moral e ético de cada indivíduo na esfera social independe da gratuidade ou não da educação escolar. Tudo está atrelado à consciência, ao comprometimento, à responsabilidade e ao bom senso de cada sujeito na busca constante de novos conhecimentos e saberes que lhes possam auxiliar a resolver os problemas cotidianos e a enfrentar com otimismo e determinação os desafios impostos pela sociedade capitalista.

Dizemos isso, porque entendemos que a peça-chave do quebra-cabeça do “jogo da vida na escola” é exatamente a qualidade da educação escolar, independentemente se esta é ofertada aos educandos nas instituições de ensino de forma gratuita ou não. É preciso, pois, desmitificar certas crenças e olhar para além das imagens e das aparências, ou seja, para além daquilo que os olhos humanos podem realmente enxergar.

Face ao exposto, cabe-nos então indagar: Como é considerado pelos professores o aluno da escola pública: deficiente/carente, diferente ou mal trabalhado?  

Ao se buscar auxílio junto às pesquisas realizadas no campo da Psicologia das Diferenças Individuais ou Psicologia Diferencial – área da Psicologia Social que busca explicar as desigualdades de desempenho existentes entre os integrantes de um todo social em termos de diferenças individuais de personalidade, rendimento intelectual e habilidades perceptivo-motoras ou de acordo com diferenças grupais, culturais, étnicas etc. (RODRIGUES, 1971), é possível verificar que a resposta para a supracitada pergunta perpassa os diversos mitos existentes acerca das causas do fracasso escolar; isso porque ela está diretamente vinculada, segundo Mizukami (1986), às nossas concepções de mundo, cultura, sociedade, homem, conhecimento, educação, escola, ensino, aprendizagem, professor, aluno, metodologia e avaliação.

Se considerarmos que os alunos das escolas públicas são deficientes/carentes, estamos fazendo alusão à concepção vigente no Brasil e nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960, onde prevalecia o “mito da deficiência de linguagem cultural e verbal”; bem como a ideia de que as crianças eram portadoras de inúmeras deficiências e problemas de desenvolvimento (psicomotor, perceptivo, cognitivo, emocional etc.) porque viviam em ambientes familiares pouco ou quase nada favorecedores ao progresso das mesmas.

Por outro lado, se entendermos que o aluno da escola pública seja diferente, corre-se o risco de incorporarmos a ideologia da classe dominante imposta às classes menos favorecidas da população, na qual o discurso da carência/deficiência cultural e verbal passa a ser substituído unicamente pelo discurso da diferença cultural, que considera os alunos oriundos de classe baixa como ‘diferentes’, em todos os aspectos, dos educandos provenientes das classes média e alta.

Em contrapartida, se assegurarmos que o aluno proveniente da escola pública é mal trabalhado, estaremos focando nossa análise no fato de que a culpa pelo baixo rendimento escolar dos educandos é da escola e dos professores, porque muitas vezes desenvolvem práticas pedagógicas que contribuem substancialmente para o aumento dos índices de evasão e repetência escolares, tais como: encaminhamento aligeirado de estudantes que não aprendem para tratamento médico, psicológico e psicopedagógico; remanejamento contínuo de alunos; rotulação; e autoritarismo do professor, entre outras (SANTOS, 2012).

Sem a pretensão de esgotar o assunto em pauta, faz-se profícuo esclarecer, em última instância, que não nos convém aqui tomar partido em relação a uma ou outra postura acerca das causas do fracasso escolar em educandos, sejam eles provenientes de escolas públicas ou privadas, mas efetuar análises crítico-reflexivas acerca da veracidade ou falsidade das concepções que giram em torno dessa complexa problemática.

Em linhas gerais, pode-se dizer que as principais causas do fracasso escolar estão diretamente relacionadas à junção de algumas ideias contidas em cada um dos mitos anteriormente elencados; as quais provocam consequências desastrosas e, muitas vezes, irreversíveis na vida pessoal, social e profissional da grande maioria dos alunos: baixa-estima, desinteresse, revolta, traumas, pessimismo e passividade, entre outros problemas de natureza similar.

Nesse sentido, faz-se urgente e necessário pensar em alternativas viáveis que contribuam para desmitificar tabus, pré-conceitos e estereótipos em relação ao fracasso escolar de alunos em termos de aprendizagem. No entanto, isso não depende somente dos ditames das políticas educacionais e/ou da organização estrutural dos sistemas escolares em geral, mas também de uma reflexão crítica a ser realizada por parte de cada profissional da educação (professores, pedagogos, psicopedagogos, orientadores e supervisores educacionais, coordenadores pedagógicos e gestores escolares), os quais devem estar engajados na luta militante em prol da conquista de uma educação de melhor qualidade para todos os educandos de diferentes níveis e modalidades de ensino.

Em Educação há sempre um recomeço. Vamos recomeçar pela escola? Vamos recomeçar por nós? O momento é agora!

     

Referências

ABRAMOWICZ, A. A menina repetente. 2.ed. Campinas: Papirus, 1996. (Coleção Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico).

BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 31.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

_______. A língua de Eulália: novela sociolinguística. 14.ed. São Paulo: Contexto, 2005.

BARROS, C. S. G. Psicologia e construtivismo. São Paulo: Ática, 1996. (Coleção Série Educação).

CARVALHO, J. S. F. As noções de erro e fracasso no contexto escolar: algumas considerações preliminares. In: AQUINO, J. D. (Org.). Erro e fracasso na escola: alternativas teóricas e práticas. 4.ed. São Paulo: Summus, p.11-24, 1997.

CERTEAU, M. A cultura no plural. 2.ed. Campinas: Papirus, 2001. (Coleção Travessia do Século).

DANTAS, H. A afetividade e a construção do sujeito na psicogenética de Wallon. In: DE LA TAILLE, Y.; OLIVEIRA, M. K.; DANTAS, H. (Orgs.). Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 9.ed. São Paulo: Summus, p.85-98, 1992.

GALVÃO, I. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. Petrópolis: Vozes, 1995. (Coleção Educação e Conhecimento).

GUSDORF, G. Mito e metafísica. São Paulo: Convívio, 1980.

LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. 17.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. (Coleção Antropologia Social).

MIZUKAMI, M. G. N. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986. (Coleção Temas Básicos de Educação e Ensino).

PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz, 1996.

RODRIGUES, A. Psicologia social. 12.ed. Petrópolis: Vozes, 1971.

SANTOS, M. P. Dificuldades de aprendizagem na escola: um tratamento psicopedagógico. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2012.

SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1980. (Coleção Educação Contemporânea).

 

prof-marcos-pereira web(*) Marcos Pereira dos Santos é doutorando em Educação, linha de pesquisa “Ensino e Aprendizagem”, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Escritor, poeta, cronista e professor adjunto de Filosofia Geral e Filosofia da Educação na Faculdade Sagrada Família (FASF), junto a cursos de graduação (bacharelado/licenciatura) e pós-graduação lato sensu, em Ponta Grossa – Paraná. Endereço eletrônico: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

 

Comentários   

0 # Vera Lúcia de Oliveira 04-09-2013 01:50
Gostei muito deste artigo.
Creio que devamos refletir e muito nas diversas formas de gestão escolar e de sala de aula que estão diretamente vinculadas às crenças individuais que os profissionais da educação trazem consigo.Crenças essa que determinam as relações humanas entre pessoas. E, assim, vai...atando ou desatando nós em nós entre nós...
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