Por que rejeitar a ideia de cidadão-cliente?

O cidadão tem o direito de participar das estratégias governamentais

Nas últimas décadas, os cargos públicos tornaram-se cobiçados por muita gente competente e com boa formação acadêmica, pois as remunerações do setor público sofreram melhorias significativas em relação a remunerações do setor privado. Será que a eficiência do funcionalismo também melhorou? O cidadão paga os tributos e tem o direito de exigir dos órgãos públicos uma contraprestação de bom nível?

Para esclarecer esse tema espinhoso, estamos entrevistando a Professora Irene Patrícia Nohara (*), doutora e livre-docente pela USP, que tem uma tese crítica da última Reforma do Estado, da década de noventa, e que irá nos expor um pouco dessas concepções.

Professornews. Professora, o que é essa concepção de cidadão-cliente?

Professora Irene: Primeiramente, gostaria de enfatizar que é uma grande satisfação fazer esta entrevista com o pessoal do Portal Professornews e que gostei muito da pauta da entrevista, justamente porque o Professornews é uma mídia voltada a discutir as questões com seriedade. Essa, talvez seja uma das grandes missões dos professores: desmascarar sentidos ocultos para além das aparências, sendo que uma das grandes falácias defendidas na Reforma Administrativa da década de noventa foi justamente a concepção de "cidadão-cliente".

Professornews. Quem construiu essa noção?

Professora Irene: Existe um documento oficial que constroi a concepção de cidadão-cliente, que é o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, criado no Brasil em meados da década de noventa. Na verdade, não é algo absolutamente inovador, pois teve muita influência das práticas de gestão pública dos países do sistema Commom Law (Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia etc.), que, aliás, enfrentaram problemas de implementação dessas mesmas práticas, chamadas de nova gestão pública (New Public Management).

Professornews. Qual é a ideia central disso tudo?

Professora Irene: Por trás disso tudo, está a ideia de modelo gerencial. Objetiva-se seduzir as pessoas com a criação de uma proposta de organização pública “flexível e eficiente, voltada para o atendimento do cidadão”. Ora, todos, em tese, querem realmente obter do Estado uma prestação eficiente e que atenda às suas necessidades.

Professornews. Então, onde estaria o problema?

Professora Irene: O primeiro problema estaria localizado nos “meios”. Pretendeu-se criar um Estado mais eficiente a partir da diminuição dos controles nos procedimentos, na privatização em larga escala, sendo o foco dado exclusivamente no ajuste fiscal. Ora, implodir pressupostos do modelo burocrático pode significar ausência de meritocracia e descontrole, porque o controle dos procedimentos também é algo que repercute numa ação mais eficiente do “aparelho”. O segundo e maior problema está justamente na falácia em si que é a ideia de “cidadão-cliente”.

Professornews. Por que seria falaciosa essa construção?

Professora Irene: Porque cidadania é um status que nos remete à ideia de participação, ou seja, participação na construção do futuro de um povo que se pretende destinatário das ações presentes. Enquanto a noção de cliente é algo mais associado às relações que se estabelecem na esfera privada, isto é, relações nas quais se associa o fato de alguém estar pagando e, por isso, ter direito a uma contraprestação, em serviços ou produtos, por exemplo. Mesmo que se fale em tax payers, isto é, nos cidadãos como pagadores de tributos, ainda assim essa concepção enfraquece a ideia maior de cidadania, porque o cliente não participa da política pública para preencher suas necessidades, enquanto a cidadania deve pressupor que a pessoa seja um ator social, isto é, seja aquele que não só terá suas necessidades preenchidas, mas que também terá voz (ativa) na estratégia pública de distribuição das oportunidades e dos benefícios coletivos. O mercado não tem as mesmas finalidades do Estado. Na prática, o mercado acaba tendo estratégias lucrativas que objetivam incutir falsas necessidades no público-alvo consumidor de seus produtos ou serviços. A ideia é falaciosa porque ela dá a percepção equivocada de que o cidadão-cliente, por ser cliente, teria “sempre razão”, pois ao pagar pelo serviço, ele tem direito de ser ouvido, mas o que ninguém divulga é que, na verdade, o status de cidadania envolve muito mais do que isso: envolve ser ouvido antes mesmo de se usufruir de algo ofertado, isto é, na estruturação da estratégia de fornecimento e distribuição dos benefícios e oportunidades coletivas! Isso é ser emancipado, é ser tratado como sujeito com dignidade e não como objeto das estratégias alheias.

Professornews. Há algum movimento por trás da propagação dessas ideias?

Professora Irene: Sim, no Brasil, eu identifico que essas ideias foram propagadas com força na década de noventa, em que predominou a colonização do público pelos valores privados. E isso pode ser associado ao fato de que muitos serviços públicos que eram gratuitos, com as privatizações, em sentido amplo, passaram a ser cobrados pelas tarifas, ou mesmo na divulgação irrefletida do princípio da subsidiariedade, colocando o público como meramente suplementar ao privado, isto é, enfraquecendo a supremacia dos interesses públicos primários, o que, de certa forma, reduz o ímpeto de disseminação da democracia material, na distribuição igualitária de oportunidades sociais. Mais ainda: faz parte do próprio momento que alguns sociólogos chamam de pós-modernidade, no qual há o enfraquecimento dos meta-discursos, isto é, da crença na possibilidade de construção de um projeto coletivo de sociedade melhor, e sua substituição por um individualismo hedonista, voltado ao consumo.

Professornews. Há luz no fim do túnel, dentro desse cenário tratado pela Professora, isto é, de individualismo, de consumismo, de ausência de preocupação com a coletividade?

Professora Irene: Sempre há, não há caminho equivocado que a coletividade trilhe que não tenha volta. Tudo é cíclico. O caminho é reconstruir a noção de espaço público e perceber que os indivíduos só são indivíduos melhores, amparados e mais seguros, se houver também a preocupação com a coletividade. Assegurar maior eficiência no Estado significa também considerar que a Constituição de 1988 ainda prevê um modelo de Estado Democrático de Direito que objetiva um projeto de desenvolvimento do País orientado a erradicar a pobreza, reduzir a marginalização e promover o bem-estar de todos, não só daqueles que podem pagar! Eu acho que, com a crise de 2008, o mundo já está pondo em xeque as fórmulas pautadas exclusivamente no ajuste fiscal, pois sem investimentos e distribuição, também não há como promover crescimento e pleno emprego. Então, o Estado deve redobrar sua capacidade de ação investindo numa burocracia ágil, reflexiva e aberta à participação social.

Professornews. Então, por que rejeitar a noção de cidadão-cliente?

Professora Irene: Porque cidadania é participação, é ser sujeito, é mais do que ter direitos simplesmente porque se paga por algo, como, em geral acontece no mercado. Num Estado que se quer democrático, o cidadão deve ser tratado não apenas como alguém para pagar ou consumir um serviço, mas como aquele que irá discutir também as estratégias de preenchimento das necessidades coletivas e os rumos de desenvolvimento do País.


Para saber mais deste e de assuntos conexos, como: Reforma do Estado, Burocracia e Eficiência, conferir: NOHARA, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia: impacto da eficiência no Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012.

 

(*) Professora Irene Patrícia Nohara é graduada, mestre, doutora e livre-docente em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo; professora pesquisadora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho; gestora do site Direito Administrativo; autora de diversos livros de direito consagrados da Editora Atlas, tais como: Reforma Administrativa e Burocracia e Direito Administrativo.

 

 

Adicionar comentário